Por Ronaldo Vainfas*
Considero patética a cobertura da mídia sobre os 50 anos do golpe de 64. A participação de muitos depoentes, aliás, consegue ser pior.
Hoje, na primeira página do Globo, apareceu o Tom Zé, dizendo que, como não constava da lista dos detentos (de alguma detenção temporária, até onde sei) achava que estava já condenado à morte. Uma piada, só pode ser piada. Ele foi militante de alguma organização? Os tropicalistas foram militantes da luta armada? Please, me esclareçam.
Pior foi ver a diva do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro, dizendo que fora ameaçada de levar um tiro na testa em pleno teatro. Pode ser, em 64 ou 68, porque todos viviam apavorados. Mas em pleno 2014 alguém levar isto a sério, a começar por ela, a diva do nosso teatro, é de chorar.
Nem o fascismo de Mussolini mandou matar Giacomo Matteoti assim, em cena, com um tiro na testa. Foi tudo às escondidas, uma execução obsecena, não em cena - e ele era o líder socialista que mais se opunha ao Duce, em 1924. Os opositores do Terceiro Reich eram sequestrados na calada da noite ou do dia, a maioria foi presa ou eliminada, mas tudo na calada. Ernst Thälmann, líder do KPD, foi preso em 33 pela Gestapo e só executado em 44. Na calada.
Só pode ser piada o que dizem uns e outros sobre as ações da ditadura brasileira. Os agentes da repressão no Brasil devem dar gargalhadas. Quem sabe ficam indignados por serem tratados como idiotas. A própria ditadura não é levada a sério nesses depoimentos, enquanto regime repressivo. A maioria dos historiadores também endossa os mitos, sabe-se lá por qual razão.
Outro dia li, também no GLOBO, que a censura intelectual no ensino da história foi terrível. Dizia-se que, no nível médio, os livros do Aquino e do Chico Alencar eram proibidos em algumas escolas. Proibidos nada! Simplesmente não eram adotados por algumas escolas porque não passavam de marxismo vulgar, esquemático e chatíssimo. Mas vendiam a rodo, porque, nos anos 70, a maior parte do professorado era esquerdizante, ignorante - e recomendava tais manuais insossos para o alunado. História de mocinho contra bandido.
Na universidade, então... lia-se Marx, Engels, Lenin, Stalin, Lúkacz, Gramsci, Althusser. Tudo da esquerda tradicional. Livros em português, publicados por editoras brasileiras! CENSURA ZERO. Fui aluno de graduação da UFF nesta época e nunca vi censura nenhuma. Os militares não estavam nem aí para o que os estudantes liam na universidade. Desde que não se armassem para tentar revoluções à moda cubana, tudo bem. Sobravam, sim, grupos de estudo de "Das Kapital", em português, claro! A censura vinha dos esquerdizóides, em geral fraquíssimos, intelectualmente, contra autores ou professores não marxistas (que eram raros, mas sofriam bulling intenso, como se diz hoje).
O que a maioria dos pesquisadores produz hoje sobre o golpe de 64 é de embrulhar o estômago de historiadores comprometidos com o ofício, e não com ideologias ou mitologias interesseiras e interessadas.
Estou defendendo o golpe? Claro que não, embora os idiotas de plantão talvez pensem que sim.
Estou defendendo uma história levada a sério, não a carnavalização dela. Toda esta bobagem lembra o filme de Carla Camurati sobre Carlota Joaquina, tratada como ninfomaníaca: narrativa iniciada por um velho escocês à sua neta, contando a história de um país exótico. Ou a série global "O Quinto dos Infernos", com seu d. Pedro I garanhão, full time.
Esta série de matérias sobre 64 segue a linha histriônica e ignorante da história. Não faltam ex-perseguidos (em geral falsos perseguidos, que ganham bolsas-ditadura!) contando piadas sobre suas pretensas ou episódicas. Gente das artes, do teatro, do Pasquim!
Falando nisso, para terminar, numa das reportagens sobre a Casa da Morte, em Petrópolis, incluindo entrevista do próprio coronel Malhães confessando tudo (mortes, mutilações de corpos etc, sem nenhum arrependimento), alguém assinou matéria dizendo que o regime militar foi confiado a psicopatas. Que interpretação medíocre, pedestre!
Certamente quem escreveu a matéria desconhece o grande texto de Hanna Arendt, filósofa de origem judaica, incumbida de reportar o julgamento de ninguém menos do que Adolph Eichmann, em Jerusalém. O grande insight de Arendt em "A Banalidade do Mal", foi dizer que Eichmann era uma criatura medíocre, normalísima, apenas preocupado em encher os trens de judeus para Auchwitz e outros campos do III Reich. Banalidade do mal perpetrado por pessoas normais, não por psicopatas. Aí reside o nó. O perigo. Arendt foi além! Mostrou a colaboração das autoridades judaicas no Holocausto. A comunidade judaica ficou furiosa, claro. Saiu um filme sobre o assunto em 2014. Vale ver.
E o que era o coronel Malhães perto de Adolph Eichman? Poupemos a história - poupemo-nos - desta comparação.
Uma formiga, um verme, diante de uma barata.
Há boa bibliografia brasileira, embora rara - e bloqueada pelos ideólogos da resistência - tratando das colaboradores do regime ou da ditadura militar (ou ditadura civil-militar, como queiram), bem como sobre a complexidade social, política e intitucional do regime que começou em 64 e terminou em...79, 80, 84, 89.
Who Knows? Who cares?
As verdades das Comissões de Verdade são patéticas: expõem fatos verdadeiros que todos já sabiam.... As interpretações são piores. Podem inspirar algum samba de carnaval em 2015. Com tema politizado e lúgrube. Skindô nhô, nhô. Nada além disso.
A história sai perdendo. A memória ganha, incluindo seus acólitos e beneficiário$.
*RONALDO VAINFAS é licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (1978), onde também fez o mestrado em História do Brasil (1983). Em 1988, concluiu o doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo. Em 2007, concluiu o pós-doutorado na Universidade de Lisboa. É considerado um dos principais historiadores do país, inclusive vencedor de prêmios como o Prêmio Literário 2009, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional e um dos principais do Brasil.