quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Comunistas de boutique

Por Régis Antônio Coimbra*

Considero injusto criticar candidatos que supõe ser comunistas por não entenderem Marx. Marx é para especialistas. Mas há comentadores que podem ajudar a entender a teoria dele. Resumindo, calcado nos economistas clássicos, notadamente David Ricardo, Marx considerou que a tendência do proletariado à rendas de quase estrita subsistência decorria não só do fato de que os incrementos de renda que o capitalismo trazia aos proletários tendia a ser consumida por um número maior de filhos que sobreviviam (e, sobrevivendo, consumiam em comida e outros itens de quase estrita sobrevivência, os acréscimos de renda que obtinham no capitalismo mais do que em qualquer outro momento histórico), mas também da exploração pelos capitalistas, que se apropriavam da mais valia.

Nisso, o principal e mais fundamental erro de Marx: ele não reconhecia o tanto que o capitalista, seja ao administrar um negócio, seja ao administrar riscos no investimento do puro capital financeiro (momento Luciana Genro...), agregavam valor à produção, nem que fosse ajudando quem produz a encontrar quem precisa (e pode...) consumir - o papel do comerciante.

O segundo grave erro de Marx foi supor que o capitalismo seria para sempre do modo como ele o "fotografou", com o que ele identificou como um desequilíbrio entre o crescimento populacional proporcional e absoluto do proletariado, e pelo menos proporcional dos burgueses (os capitalistas) e pequeno-burgueses (os lacaios dos burgueses... o mais próximo de classe média que Marx teorizou mais em detalhe). Isso envolvia também um problema de desequilíbrio entre a capacidade de produção, crescente, e a capacidade de consumo, que Marx identificava como restrita à burguesia e pequena burguesia, numericamente insignificante e cada vez menos significante (menos, ao menos proporcionalmente, numerosa em relação ao proletariado), o que levaria a crises cada vez maiores e mais graves de superprodução e subconsumo.

O primeiro erro (sobre a expropriação da mais valia) é teórico e é parcial. De fato, o burguês tem vantagens de negociação com a mão de obra não especializada e, nisso, leva vantagens. Mas é um erro insanável quanto ao não reconhecimento do trabalho do empresário ou capitalista (do especulador financeiro, como diria Luciana genro).

O segundo erro é histórico. Marx chegou a acompanhar detidamente o movimento cartista pelo qual, na Inglaterra, foram institucionalizados direitos como que trabalhistas e de crianças. Ainda durante seu tempo de vida (em sua última década), na Alemanha, no sistema de civil law ou do dito sistema romano-germânico de direito (mais parecido com o nosso), foram criadas as primeiras leis "trabalhistas" (primeiro dos acidentes de trabalho, em seguida direitos mais propriamente trabalhistas). Isso é, viu surgir já a social-democracia e a construção algo acelerada de uma classe média com considerável poder de consumo - adaptação do capitalismo ao problema estrutural do descompasso da capacidade de produção sem mercados consumidores proporcionais.

Que Marx tenha cometido esses erros em nada diminui seu gênio, limitado pelo conhecimento de seu tempo e apenas parcialmente por seu... mau gênio. Sua crítica ainda é válida ao denunciar a dura diferença entre as posições do trabalhador assalariado ou mesmo pequeno empresário cuja renda se limita à mais ou menos estrita subsistência (sem possibilidade de poupar de modo significativo) e o capitalista, empresário ou mesmo assalariado com rendas muito superiores às suas necessidades ou mesmo possibilidade de consumo.

Marx, no entanto, não pretendia apenas analisar (mal, não por culpa apenas própria) e entender (mal, não por culpa apenas própria) a sociedade. Com base em suas análises e entendimento frágeis, Marx se dedicou a prever o futuro e a orientar formas de otimizar as mudanças. Nisso, passamos dos erros para os sonhos e pesadelos.

Marx entende que a história da humanidade é a história da luta de classes. Toda a história da humanidade seria basicamente a história de umas classes explorando outras. Não havendo propriamente meios de produção, os mais fortes (e, na família, os homens), subjugando e explorando os mais fracos (na família, as mulheres). Havendo meios de produção, os proprietários desses meios (notadamente a posse de terra) podiam ter para si excedentes de bens de consumo, como comida, muito além do que poderiam consumir e, assim, podiam, por exemplo, sustentar especialistas, que não se precisariam dedicar à produção de mais alimentos, mas a fazer adornos, servir de seguranças (capangas, exércitos...), glorificadores da classe dominante etc.

Em diversos momentos um modo de produção foi superado por outro, o poder político de uns, calcado em certo tipo de produção, sendo superado economicamente por outro. O exemplo mais próximo de Marx foram as revoluções burguesas, nas quais a aristocracia, cuja base de poder era a posse de terras, foi superada pela burguesia, cuja base era o comércio e indústria.

Com base nesse exemplo mais marcante e generalizações retrospectivas desse fenômeno para outros momentos históricos, Marx conclui que o capitalismo seria o momento mais radical da luta de classes, com mais radical exploração, isso envolvendo uma maior concentração de poder econômico e político num proporcionalmente menor grupo de pessoas, os burgueses, que paradoxalmente, no entender de Marx, dependeriam mais radicalmente do proletariado do que outras classes dominantes. Bastaria o proletariado perceber que os burgueses dependiam deles mais do que eles dos burgueses para que se iniciasse mais ou menos abruptamente (como se pode diferenciar que ocorreu nas revoluções burguesas, contrastantemente nas reformas e revoluções parciais britânicas, de um lado, e na catastrófica e radical revolução - ou sucessão de revoluções - francesa), a revolução do proletariado.

Essa revolução seria difícil, como difícil (e fracassada) foi a comuna de Paris, que Marx teve a oportunidade de aproximadamente acompanhar e que falhou por ter sido um levante relativamente isolado, que teve de se contrapor a toda uma constelação de países capitalistas e mesmo à tendência do revolucionários de regredir a formas mais primitivas de exploração de classe. O grande problema dessa revolução é extinguir a tendência à luta (e exploração) de classes. Para tanto precisa se universalizar (ser estendida e vencida em todos os países relevantes) e, uma vez feito isso, como que atravessar o deserto por uns 40 anos, como segundo a bíblia teria feito Moisés, extinguindo a geração contaminada pela cultura da luta (e exploração) de classe.

Mesmo tendo considerável clareza da dificuldade desse sonho, Marx não se furtou a incentivar o pesadelo de uma tal transição. Pode ajudar a entender o fenômeno a distinção da transição como o período de ditadura do proletariado, no socialismo, e a conclusão do processo na abolição do estado (Marx, enfim, mostra-se um anarquista) no comunismo. O objetivo é o comunismo, mas o meio é o socialismo.

O socialismo assumidamente não é um momento de liberdade, mas de ditadura e guerra. Guerra dos países que iniciam tal revolução contra todos os demais países, ainda capitalistas ou em outros estágios mais primitivos de luta de classes; ditadura (ou guerra civil) dos revolucionários contra os contra-revolucionários dentro do próprio país.

Isso "justifica" o horror que foram ou são todos os casos de socialismo real. Em cada caso, a ditadura do proletariado envolve fiscalizar rigorosamente os cidadãos para identificar os contra-revolucionários e espiões dos países capitalistas e isso significa que haverá muitos policiais, fiscais, delatores e algumas vítimas de mal entendidos que, até esclarecerem que não são espiões ou contra-revolucionários... bem, não raro já terão morrido.

Tanto pior, tal estrutura inevitavelmente paranoica leva a um encastelamento não de uma horizontal democracia participativa na qual o proletariado toma o controle de fato do estado, mas numa estratificação em que poucos membros do partido comunista de cada um dos países do socialismo real encastelam-se com poderes especiais e excepcionais e, tragicamente, tendem a se corromper (e rápido) com tal poder. A burocracia acaba tornando-se uma burguesia, com a desvantagem de que muito mais autoritária e paranoica. E, tanto pior, enquanto a revolução do proletariado não se dissemina entre todos os países relevantes, essa paranoia até que se justifica.

Assim, quem defende o socialismo, deve estar disposto a gerações de sofrimento exacerbado sem muita perspectiva de dar certo. Nesse sentido, é admirável (e outro tanto assustador), que haja gente séria (não é o caso da maioria dos que chama atenção para si próprios como supostamente socialistas ou comunistas) que acredita que isso é possível e que vale a pena.

Uma alternativa para o comunismo, no entanto, é a ampliação das classes médias. O proletariado nunca teve a menor chance de liderar uma revolução. Estavam brutalizados por trabalhos fragmentados em processos complexos dos quais não tinham uma percepção razoavelmente ampla. Iniciadas as revoluções, invariavelmente eram obliterados por pequeno-burgueses educados e espertos. O exemplo mais eloquente disso foi Lênin que eu acredito que sinceramente sonhava com um socialismo que num tempo razoável (algumas poucas gerações) chegasse no comunismo. Mas isso rapidamente se desfez com um atentado no qual ele quase morreu e a partir daí encastelou-se. Seu sucessor, Stálin, não poupou esforços (nem vidas humanas) para evitar ser vítima de qualquer atentado.

Esse é um roteiro ao qual o sonho do socialismo tende fortemente, embora a Rússia pouco tivesse a ver com o que Marx entendia como o lugar ideal para se iniciar a revolução do proletariado - o ideal seria na Inglaterra; secundariamente, poderia começar na Alemanha ou França. Iniciar a revolução em países que sequer eram capitalistas, como Rússia ou Cuba é condenar tais revoluções a lutar contra gigantes capitalistas uma guerra mais ou menos fria sem esperança.

A esperança do levante popular esbarra no fato de que mesmo os mais pobres, hoje, tem considerável poder de consumo que é inevitavelmente prejudicado por economias "de guerra" como as que tipicamente se instalam em países socialistas, preocupados com a fiscalização de seus cidadãos e possíveis espiões estrangeiros. Se houve alguma chance disso ocorrer com os supostamente heroicos (mas embotados) trabalhadores braçais e cheios de filhos da indústria pesada do capitalismo que Marx viu no século XIX, no capitalismo de serviços e classes médias com considerável poder de consumo dos séculos XX e XXI, é ridiculamente inviável. Para começar, mesmo os mais rústicos militantes de esquerda são, na verdade, almofadinhas; revolucionários de boutique - com curiosa predileção por produtos da Apple.


*RÉGIS ANTÔNIO COIMBRA é 1º Vice-Presidente do Movimento Estudantil Liberdade. Filósofo e advogado formado pela UFRGS. Especialista em Direito e Economia e, atualmente, é Acadêmico da Licenciatura em Dança pela UFRGS e Professor no Colégio Tiradentes da Brigada Militar.

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