Por Régis Antônio Coimbra*
Só não vejo no trabalho dos técnicos um trabalho manual ou não intelectual. Talvez se possa dizer que é um trabalho de apoio.
O capitalismo não valoriza o trabalho intelectual mais do que o manual, mas sim o trabalho desejado e que poucos conseguem fazer pelos mais diversos tipos de barreira, desde a experiência à graça, passando pela eficiência ou estilo que por qualquer razão seja valorizado (como o da celebridade cuja identidade confere valor a um trabalho, reportagem etc).
Numa sociedade pós-classes marxista o que temos são homens integrais, todos capazes de participar tanto das grandes decisões quanto da faxina. Como, em tese, são todos em média igualmente capazes, não há necessidade de um juiz e de um escrivão, ou de um professor e de um bibliotecário... e de um faxineiro. Em média, todos se podem revezar nas mais diversas tarefas. Mas... isso faz algum sentido?
Um grande enigma em Marx é se uma sociedade pós classes seria igualitária, ou em que sentido o seria. Vários grupos mesmo com interesse econômico podem ser compostos basicamente com pessoas de mesma formação e qualificação e, mesmo assim, tende a haver uma forte divisão de tarefas e diferenças de patamar remuneratório, seja em dinheiro, seja em reconhecimento.
É improvável que isso desapareça mesmo numa sociedade sem classes, salvo algum sistema de equivalência via próteses que leve todos a empatar em termos de competências diversas. A imagem não precisa ser distópica, num sistema repressor do talento; pode ser no sentido da supressão de deficiências.
No entanto, um igualitarismo radical é improvável se houver algum grau de especialização bem como se houver crises ou urgências que exijam e valorem competências específicas que se podem descobrir mesmo no calor das situações, gerando lideranças diversas. Um igualitarismo que não é de se jogar fora tende a se acentuar no sentido da supressão das tarefas mais subalternas por máquinas, inclusive com certos graus ou tipos de inteligência, capazes de fazer a faxina ou o trabalho mais bruto de pesquisa textual, por exemplo.
Num experimento mental de uma sociedade pós classes e mesmo pós industrial no qual todos são vendedores do próprio talento que, em última análise, pode ser o "talento" de ser simpático (ainda que de modos paradoxais) ou "sexy" - uma economia da sedução - é presumível que haja uma curva normal de talentos ou de reconhecimento de talentos. Não se trata de uma utopia na qual não há problemas, mas de uma situação na qual não se tem o problema da exploração de uma classe por outra.
O pagamento mesmo hoje não é todo em dinheiro, sob a forma de juro, lucro, salário ou honorários. Além de vantagens indiretas bem conhecidas como plano de saúde ou aposentadoria, ou descontos em farmácias, academias de ginástica ou bancos, há também as mais sutis relativas a simplesmente pertencer a uma corporação, grupo étnico, gênero (sexual) ou "indústria" mais organizada ou valorizada. Um servidor público, por exemplo, por ter maior estabilidade remuneratória, tende a pagar juros mais baixos em bancos; mulheres, por se envolverem menos em acidentes de trânsito graves, tendem a pagar menores seguros de automóveis (furto, roubo, danos materiais e pessoais próprios e de - causados contra - terceiros).
Nisso, aliás, é de se considerar uma grande gama de questões não muito abordadas por Marx ou pelos marxistas, como o das externalidades, isso é, dos custos que não aparecem (não por estarem escondidos, mas por não serem cobrados) nos preços, como a da tripla jornada de trabalho das mulheres, ou os custos ambientais. Também a necessidade de poupança e, enfim, boas decisões econômicas.
Não tanto por uma revolução violenta virando a mesa de discussões mas por mudanças sutis como a redução da fecundidade das populações, o cenário estudado por Marx em enorme medida desapareceu. Não existe mais um proletariado crescente, com enorme exército de reserva (de trabalhadores). Também não há crises recorrentes de superprodução e subconsumo por falta de capacidade de consumo da parte dos trabalhadores - ao contrário, os trabalhadores mesmo mais subalternos são capazes de consumo e mesmo de poupança, embora em muitas sociedades (como a brasileira) não sejam estimulados a isso.
Se um faxineiro é capaz de poupança e outro tem crédito, ambos são capitalistas, inclusive capazes de investir, seja emprestando a juros por conta própria, seja depositando numa conta remunerada bancária, seja comprando ações ou montando um negócio próprio. Não é uma "acabada" sociedade sem classes, mas certamente não é a sociedade de classes descrita por Marx como radicalizada no capitalismo.
Pode-se argumentar que assim como a empresa em geral pode ser descrita como um feixe de contratos, os bancos são feixes ainda mais centralizadores de decisões econômicas individuais. Nisso o principal problema não é o da exploração de uma classe por outra, mas problemas clássicos de agência, em que, assim como na política contemporânea, a economia contemporânea é dividida em mais ou menos pequenos investidores (pessoas físicas, pequenas ou até relativamente grandes empresas) e em grandes agenciadores desses investimentos - os bancos, os quais, no entanto, podem eles mesmos ser objeto de investimento dos pequenos investidores.
O problema seja pelo aspecto político, seja pela perspectiva econômico (divisão problemática) está na ficção (ou limites) das assembleias gerais, das eleições ou votações em geral.
*RÉGIS ANTÔNIO COIMBRA é filósofo e advogado formado pela UFRGS. Especialista em Direito e Economia e, atualmente, é Acadêmico da Licenciatura em Dança pela UFRGS.
Hehe... talvez seja importante contextualizar que esse texto é uma resposta a outro texto que caracterizava a greve nas IFES como um clássico exemplo do conflito entre capital e trabalho (ou, mais precisamente, entre capitalistas e trabalhadores). Começava dizendo que o fato de só os professores terem recebido proposta mostrava bem a diferença de valoração do trabalho intelectual e do trabalho... não tão intelectual.
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